3 de fevereiro de 2016

Delicadeza













 

Em memória de Andréia Gallo

O mundo não comporta a delicadeza.
Não há lugar para a calmaria, o silêncio.
Tampouco para gestos leves, olhares serenos,
vozes suaves.

Ou somos brutos e insensíveis,
ou adoecemos gravemente.

Algumas pessoas, ainda que frágeis e boas,
resistem ao peso dos dias.

Mas outras, as mais especiais,
que não fazem parte da “raça dos comuns”,
ainda que se façam fortes e lutem,
perecem.

Talvez, seja Deus querendo poupá-las de fazer parte
de uma humanidade hostil,
que Ele já se arrependeu de ter criado.

Talvez, seja apenas mais um lado, 
injusto, dessa existência sem sentido.

Perdemos uma amiga, uma irmã,
como se fosse algo banal,
como se perdêssemos um trem que partiu mais cedo.

Nada pode ser feito.

E cá ficamos nós, sós, tristes,
impotentes e órfãos.

2 de janeiro de 2016

Homenagem para a minha amiga Déia




O que falar sobre Andréia Gallo, a minha amiga Déia? O retrato da serenidade, da delicadeza, da simplicidade, do cuidado com as pessoas ao seu redor. Excelente filha, professora dedicada, esposa amorosa, amiga generosa. Déia, para mim, era um ser superior, sempre tranquila, doce, levando paz para todos que conviviam com ela. Fui aluna de Déia, em 2005, e daí começamos uma amizade que durou 10 anos. Lutei muito para conseguir a pílula contra o câncer para ela, queria tanto que ela aguentasse um pouco mais até a chegada do remédio, mas não foi essa a vontade de Deus. Quero me lembrar sempre dela como estava na foto acima, bem, contente, sem dores. E levarei comigo as três últimas palavras que ela me disse, quase sussurrando, quando fui visitá-la no sábado, dia 26 de dezembro de 2015, na unidade semi-intensiva: “Eu te amo”. Oh, minha amiga, apesar de eu já ter lhe dito isso algumas vezes, queria muito ter a certeza de que você partiu sabendo que eu também a amava e amo, e o quanto eu queria te ver bem, curada. Vá em paz, Déia! Que Deus dê forças ao que foi o seu companheiro de 24 anos, Mayrant Gallo, a mim, e a todos aqueles que tiveram o privilégio de sua amizade.


16 de julho de 2015

CONVITE

Lançamento dos livros dos meus amigos Mayrant Gallo e Carlos Barbosa. Vamos?

(clique na imagem para ampliá-la)

26 de abril de 2015

A insuportável família feliz, de Victor Mascarenhas


Não conhecia o autor Victor Mascarenhas e tive uma grata surpresa ao ler o livro de contos “A insuportável família feliz” (2011). Pequeno, com apenas três narrativas, o livro que faz parte da Coleção Cartas Bahianas, da editora P55, é, na verdade, grandioso.

O primeiro conto, que dá título ao livro, conta a história de Licinho, que dentro de um ônibus, voltando para casa, já sabe que encontrará a família reunida para mais uma festa surpresa do seu aniversário. A cada ano, a mãe convida tios, primos, avós, amigos, conhecidos... e ficam todos lá, a sua espera, sorridentes, sadios, harmoniosos e felizes. Ainda que tenham problemas, usam a máscara da felicidade inabalável, afinal, são exemplos de familiares, sempre unidos, amorosos e corretos em tudo. Licinho, no meio de tanta felicidade, sente-se totalmente deslocado, mas, assim como todos, entende ser necessário encenar a farsa. Sabe que precisa chegar em casa, exibir uma cara de surpresa, ficar feliz, comer o bolo da tia Zulmira, ouvir as histórias de sempre, enfim, seguir todas as regras, mesmo contra a sua vontade, mesmo em meio a uma terrível sensação de tédio. Este conto de Victor Mascarenhas me fez lembrar do livro “Poema em quadrinhos”, de Dino Buzzati, no qual lemos a seguinte passagem:

“No geral, serão mesmo
felizes por serem imortais!
Claro. Felizes. Não devem mais morrer
não devem mais suportar
doenças, ferimentos não existem mais.
Ninguém tem fome, ninguém tem necessidade,
todos iguais, falam igual
comem igual, se divertem igual.
São felizes, bocejam!”

Aos 30 anos, Licinho não estava satisfeito com o rumo de sua vida, não queria ser condenado à mediocridade, como todos os parentes, mas não tinha coragem de mudar o status quo, de quebrar as normas da família. Até que encontra um bêbado desconhecido que o fará refletir um pouco e - o leitor supõe - perceber que há outras possibilidades, outros caminhos, ainda que também não levem a felicidade plena, verdadeira, que talvez não exista, ou seja sempre insuportável.

O segundo conto do livro, intitulado “Superstar”, nos apresenta a Billy Jackson, “um menino pobre, preto e de periferia” que vê Michael Jackson dançar e, fascinado, decide imitar o ídolo. Agnaldo, já adulto, faz shows em bares e outras espeluncas, ganha uma mixaria que mal dá para sobreviver, gasta quase todo o dinheiro com roupas para se parecer com o rei do pop, mas, ainda assim, continua o seu trabalho de cover. Na verdade, mais do que um trabalho, ser Billy Jackson era a forma encontrada por Agnaldo para ser alguém, ser visto, admirado - pelo menos enquanto dançava - mesmo que para isso tivesse de se fantasiar, usar uma voz que não era a sua, ter um cabelo que não era o seu, e uma pele que desbotava com o suor. Para Agnaldo, era preciso se transformar no astro a fim de continuar vivo. Até que Michael Jackson morre e Agnaldo, sentindo-se ridículo, começa a refletir, a pensar se vale a pena continuar, pois sabe que algo nele também morreu.

O terceiro conto, “A última canção”, é a história de Artur Augusto, cantor decadente, que não se conforma em não ser mais lembrado, nem tocado nas rádios, e segue viajando para se autopromover. Chega a Feira de Santana, encomenda seus próprios CDs no Feiraguai, pede as próprias músicas nas emissoras, manda recados nos bares como se fosse a direção do estabelecimento, para que possa se apresentar. Assim, fica conhecido na cidade, vende alguns discos, ganha uma boa grana e ainda consegue um show com a sua banda, que não existe. Artur Augusto, então, satisfeito, continua as suas viagens. As mentiras que conta, o teatro que cria para voltar a ser famoso, tudo isso é apenas uma forma de “continuar existindo em algum lugar perdido por esse país”.

Este terceiro conto também me lembrou de uma outra obra, o conto “O espelho”, de Machado de Assis. Arthur Augusto é como o personagem Jacobina, que só se reconhece enquanto alferes. No dia em que tira a farda e se despe, no dia em que não há mais ninguém para chamá-lo de “meu alferes” e para lhe render elogios e venerações, ele não mais se enxerga no espelho. Assim também Arthur Augusto, que para existir, para sentir-se vivo, precisa ser ouvido nas rádios, admirado. Antes de ser o homem, ele é o cantor famoso, sem o qual não se reconhece.  

Nos três contos do livro “A insuportável família feliz”, os personagens vivem em meio a farsas, usam máscaras para continuar vivendo, mesmo que sentindo-se deslocados, medíocres, ridículos, mentindo para eles mesmos e para os outros. 

Victor Mascarenhas, com essas três belas histórias, que ultrapassam o viés ficcional  - porque espantosamente reais -, nos leva a uma outra reflexão sobre aquilo que Machado de Assis transmitia também em suas obras: o quanto priorizamos a “alma externa” (aquilo que as pessoas pensam de nós, o prestígio) em detrimento da nossa “alma interna”, ou seja, da nossa real personalidade.

31 de dezembro de 2014

A carta


Acorda, trabalha, se exaspera,
executa sua rotina nos mínimos detalhes
numa repetição enfadonha e desesperada
não se permitindo, nunca, uma hora a mais de sono,
um murmúrio, um mísero atraso.

Ama, sofre, sonha, espera,
como se valesse a pena todo e qualquer momento debaixo do sol,
ignorando que a cada passo que dá morre mais um pouco, se mata,
que cada pensamento seu é um adeus,
e que cada verso escrito, uma despedida, 
uma linha, um esboço
de uma carta suicida.

14 de dezembro de 2014

Vestígios

(A cama do defunto, de Edvard Munch)


















Não, não somos nada

e nunca seremos.

Não passamos de simples espectros do que foram os outros,
sombras dissipadas na parede.

Ontem, corremos em direção ao mar,
construímos castelos de areia,
conversamos com amigos imaginários.

Hoje, num leito branco e cheirando a éter,
abrigamos mais um tumor ancestral,
e esperamos pelo dia que sempre vem,
única verdade inabalável.

Amanhã, quem sabe,
nos tornemos vestígios,
lembranças escusas na mente de alguém.

9 de abril de 2014

Vencedor do 2º Prêmio Brasília de Literatura












Roberval Pereyr foi um dos ganhadores do 2º Prêmio Brasília de Literatura. O seu livro Mirantes ficou em 1º lugar na modalidade Poesia. Estou feliz demais, pois sou admiradora confessa da poesia de Roberval Pereyr e sinto-me honrada em tê-lo como meu orientador ─ no mestrado da UEFS ─ e meu amigo. Roberval, além de grande escritor, é um professor excelente, um orientador atento e um ser humano raro: simples, honesto, sempre pronto a ajudar e dono de uma simpatia sem igual. Esse prêmio é, portanto, um reconhecimento mais do que merecido. 

Abaixo, compartilho o seu poema "Desmentido", um dos meus preferidos: 

DESMENTIDO

Alguém me reconhece num retrato de menino.
Não sou eu: é minha antiga paz.
A história de um homem é sua pista falsa:
estudam meus sonhos, meus passos, meus mapas
e dizem quem sou inutilmente.
Inutilmente.
Porque sou sempre o que vem pelo atalho.

(Roberval Pereyr)


25 de dezembro de 2013

O jogador

Os jogadores de cartas, de Cézanne















     Apostou alto. Imaginou que ganharia de novo. Era bom nisso. Há anos frequentava o cassino. Perdia algumas vezes, mas, ao final, sempre saía satisfeito. Quase não parava em casa, pouco via a mulher e a filha recém-nascida, mas o que importava mesmo era dar o conforto que elas mereciam. Como suspeitara, ganhou mais uma vez. E, apesar de grande jogador, nunca havia faturado tanto. Definitivamente, era o seu dia de sorte. Nem acreditava na quantia que iria entregar à família. A mulher, que andava chateada com ele, ficaria contente. Agora, ela ainda estaria nos trilhos, indo visitar a mãe. Mas assim que ela chegasse de viagem, ele contaria a novidade. Não via a hora. Rindo alto, levantou-se, apanhou o chapéu e preparava-se para sair quando um colega o segurou no braço e falou, desconcertado, sobre o acidente de trem. Ainda absorto, ele pôs a mão no bolso, depositou todo o dinheiro sobre a mesa e, em silêncio, atravessou a porta.

16 de outubro de 2013

Nunca mais















Olhos fixos no teto. Não queria tomar banho algum. Que o deixassem em paz. Era pedir muito? A sua mulher, desde que ele ficara doente, não era mais a mesma, havia perdido a alegria de outrora. Antes, sempre tão viva e atraente, andava agora triste, cansada, sem esperanças. Em alguns meses, envelhecera anos. Tinha se acostumado com a nova rotina, não reclamava, o que a feria era não ser reconhecida pelo marido. Sabia que não era culpa dele, ninguém escolhia ter Alzheimer. No entanto, doía o fato de ter sido esquecida pela pessoa que mais amava, mesmo involuntariamente. Mas essa era uma realidade que ela precisava enfrentar: o marido não voltaria a ser como antes. Nunca mais. O único momento em que ele se lembrava dela era ao contemplar as suas fotos de quando jovem. Olha que moça linda, cabelos loiros, sorriso encantador. A minha mulher. Eu era apaixonado por ela. Onde ela está? Você a viu? Sou eu, esta sou eu, depois que nos casamos. Não, não é você. Onde já se viu uma doidice dessas? Veja, que belos olhos azuis. Para onde será que ela foi? Dias depois, ao levar comida para o marido, percebeu que ele a observava de modo estranho, com a boca aberta, um ar de criança que está vendo o mar pela primeira vez. Depositou o prato em seu colo e subiu as escadas. Ao retornar, ele perguntou: você viu a moça bonita, loira, de olhos azuis? Tão linda, sorriso encantador... ela esteve aqui, veio me ver. Deixou este prato de comida, subiu as escadas e desapareceu. Estou até agora esperando, olhando lá pra cima, mas ela não voltou, nunca mais voltou.


22 de setembro de 2013

Morangos silvestres





       









O filme sueco Morangos Silvestres, com roteiro e direção de Ingmar Bergman, exibido em 1957, foi considerado pela New York Times um dos 1000 melhores filmes já produzidos e, a meu ver, não existe nenhum exagero nisso. Nos minutos iniciais da película, na passagem do primeiro e estranho sonho do professor de medicina Isak Borg, observei estar diante de um filme com toques surrealistas, no estilo de Luis Buñuel. Mas admito que Ingmar Bergman me encantou muito mais do que conseguiu o cineasta espanhol. Deixando de lado comparações inúteis e voltando a Bergman, ele promove, com Morangos Silvestres, um tipo de road-movie, no qual o personagem Isak Borg faz toda uma revisão existencial. Acometido por sonhos que pareciam querer lhe avisar da proximidade da morte, Isak percebe bem mais do que isso, percebe que sempre caminhou como um morto: frio, insensível, egoísta, afastado de qualquer desejo, de qualquer ato que o tornasse vivo. Velho e solitário descobre, ao fazer uma viagem a Lund, a fim de receber um prêmio honorífico, que ainda havia tempo de se tornar outro frente ao seu filho (que lhe recorda a sua juventude amargurada), à sua nora Marianne, à sua fiel criada e à sua caústica mãe (retrato do que ele, provavelmente, se tornaria). É na estrada que Isak reconhece a leveza e o frescor de três jovens, cheios de planos, que pegam carona e seguem com ele; é na estrada que ele se lembra do seu casamento frustrado, ao acolher um infeliz casal que sofre um acidente de carro; é na estrada que ele compartilha da angústia de Marianne, que está grávida e magoada com o marido, que, cético como o pai, acredita que a vida é mera perda de tempo e, por isso, não vale a pena colocar mais um ser no mundo. O senhor Borg também visita a casa da sua infância e evoca a lembrança do seu amor pela prima Sara, que acaba se casando com seu irmão, bem mais atrevido e intenso do que ele jamais foi capaz de ser. E ao fazer toda essa trajetória, explorando os planos da realidade, do sonho e da memória, Bergman nos faz refletir sobre o sentido da existência e do tempo que passa sem retorno. O filme foi escrito quando Bergman estava internado em um hospital e assistiu à palestra de um médico que falava sobre doenças psicossomáticas. Mais tarde, ele confessa: “Eu criara um personagem que se assemelhava a meu pai, mas que, no fundo, era eu, completamente. Com 37 anos, privado de relações humanas, introvertido e fracassado”. No entanto, com Morangos Silvestres, Bergman nos mostra, também, que até à nossa última viagem, ainda temos meios de consertar as coisas, de levantar do túmulo em que dormimos toda noite e tentar uma nova comunhão conosco, com a vida e com as pessoas que amamos. Morangos Silvestres é, sem dúvida, mais um dos filmes eternos que tive a sorte de assistir.